Os meios de comunicação perceberam como uma notícia criminal desperta a atenção da população. Daí a presença recorrente desse tema em manchetes, reportagens policiais, filmes, novelas ou seriados. Inicialmente, num raciocínio perfunctório e ignaro, poder-se-ia afirmar que essa quase fascinação por episódios delituosos é fruto da curiosidade humana. Todavia, à luz da criminologia psicanalítica há outra explicação.
Excluída a hipótese do delinquente patológico, a psicanálise capitaneada por Freud (com algumas variações entre seus discípulos Adler, Jung, Rank, Ferenczi, Reich etc) sustenta que o homem é, por natureza, um ser a-social, um criminoso em potencial. Significa dizer que todos temos aptidão tanto à prática do bem como do mal. Célebre a frase de Freud: “a criança é um perverso polimórfico”.
Ainda, a personalidade humana fraciona-se em Id, Superego e Ego. O primeiro é inconsciente, irracional, ilógico e amoral; um conjunto de reações primitivas destinadas às satisfações biológicas imediatas, pouco importando as consequências. O segundo é o oposto, vulgarmente é a “consciência”; normas de conduta social interiorizadas que atuam como juízo censório do Id. Já o Ego é o complexo de reações que tenta conciliar os esforços e as demandas do Id com as exigências da realidade, interna (solicitações de ordem moral) ou externa (solicitações de ordem social) (v. TRINDADE, Jorge, Manual de Psicologia Jurídica para operadores do Direito, 2ªed., Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2007, p. 66).
Tais questões são premissas para compreensão do que será desenvolvido à frente.
De maneira geral, o crime exprime uma perda do poder inibitório do Superego em relação ao Ego, que fica, assim, livre para obedecer às exigências do Id. Porém, há o criminoso latente, aquele que não conseguiu arrastar o Ego para a criminalidade real, pois o seu juízo censório e repressivo, da consciência, foi capaz de deter o ímpeto criminoso advindo do inconsciente (Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, Criminologia: o homem delinqüente e a sociedade criminógena, 2ªed., Coimbra Editora, 1997, p. 193).
Com efeito, todos somos criminosos latentes, já que o ser humano é um criminoso em potencial. O Id, nas suas reações impulsivas destinadas à obtenção do prazer, é uma fábrica inconsciente de estímulos delituosos; apenas obstada pela atuação do Superego sobre o Ego.
A repressão desses influxos criminógenos inconscientes gera um dos mecanismos de defesa do Ego (maneira inconsciente utilizada frente às diversas situações com vista a repelir ou a reduzir a ansiedade, e manter o equilíbrio da personalidade), o fenômeno da projeção: defesa que consiste em atribuir aos outros os sentimentos ou características não admitidos em si mesmo. Dessa forma, impulsos ou pensamentos proibidos são atribuídos a outra pessoa e negados em relação a si próprio, com o objetivo de afastar a ansiedade (TRINDADE, Jorge, op cit, p. 70).
Dessarte, por meio daquele instrumento defensivo, atribuindo seus sentimentos e características a terceiros, as pessoas se identificam com a figura da vítima ou do criminoso. É a sensação de ambivalência (como autor do delito ou vítima) da sociedade face o crime que, mesmo inconscientemente, desperta-lhe a atenção e o imaginário, permitindo um raio de conforto ao desopilar a sua vida em biografias alheias. Por isso o êxtase que o fato criminoso provoca nas pessoas.
Com precisão, explicam Jorge Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade que “no primeiro caso (colocação no lugar da vítima) a punição do delinquente permite à sociedade a livre expressão dos seus próprios instintos de agressão. A pena não é mais do que a violência legitimada. A pena - escreve Freud - oferece aos que a aplicam a oportunidade de, a coberto da justificação da expiação, praticar os mesmos atos criminosos. É este um dos fundamentos da nossa ordem penal: ter como pressuposto a identidade dos impulsos criminosos e da sociedade punitiva. No segundo caso, a punição do delinquente dá à sociedade a oportunidade de autopunição e expiação dos sentimentos colectivos de culpa. À semelhança do que acontece no plano individual, o sentimento de culpa - e a necessidade da sua expiação por meio do crime e do castigo - é também um dado da experiência coletiva. Como refere Reik, ‘somos todos acusados de um crime desconhecido por um juiz invisível’. Ora, através do mecanismo da projeção, a coletividade transfere a sua culpa para o delinquente e pune-se, punindo-o. É a teoria do bode expiatório, com tradições na criminologia psicanalítica (op. cit., p. 203/204).
Detentores dos conhecimentos psicanalíticos ou não, os meios de comunicações foram atentos a essa característica da personalidade humana, dela fazendo grande proveito com a exploração (não rara sensacionalista) de episódios delituosos para cooptar o público, que por sua vez deleita-se (normalmente de forma inconsciente) numa história cujo enredo tem a sensação de contracenar.
Referência: Marcelo Misaka
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