De maneira resumida, não pretende esse texto esgotar toda a bibliografia existente hoje sobre o conceito Gênero, já bastante vasta. Vamos elencar alguns pressupostos que norteiam os estudos e compreensão de diversas(os) estudiosas(os), militantes de movimentos nesta fase atual de compreensão da relação Masculino/Feminino.
A conceituação de Gênero, enquanto possibilidade de "entender processos de construção/reconstrução das práticas das relações sociais, que homens e mulheres desenvolvem/vivenciam no social" (Bandeira e Oliveira, 1990, p.8), tem redundado em algumas questões que precisam ser melhor clareadas. Em primeiro lugar, o conceito tem uma história, pois ao longo dos séculos, as pessoas utilizaram de forma figurada "os termos gramaticais para evocar os traços de caráter ou os traços sexuais" (Scott, 1995, p.72). Assim, já em 1878, Gladstone, citada por Scott, afirmava que "Atena não tinha nada do sexo além do gênero, nada da mulher além da forma" (p. 72).
Recentemente as feministas americanas começaram a utilizar a palavra Gênero no sentido literal, como uma forma de entender, visualizar e referir-se à organização social da relação entre os sexos. Eram tentativas de resistência ao determinismo biológico implícito, por parte destas feministas, presente no uso dos termos como sexo ou diferença sexual. Na verdade queria-se enfatizar o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas em sexo. Conforme assinala Scott (1995), citando Davis, "nosso objetivo é descobrir o leque de papéis e de simbolismos sexuais nas diferentes sociedades e períodos, é encontrar qual era o seu sentido e como eles funcionavam para manter a ordem social ou para mudá-la" (p.72).
O Gênero também era visto e proposto por pesquisadores que afirmavam a importância do conceito para transformar os paradigmas no interior de cada disciplina, ou conforme Gordon, Buhle e Dye, citadas por Scott (1995), "inscrever as mulheres na história implica necessariamente a redefinição e o alargamento das noções tradicionais ... não é demais dizer que ainda que as tentativas iniciais tenham sido hesitantes, uma tal metodologia implica não somente uma nova história de mulheres, mas também uma nova história" (p. 73).
Esta afirmação pressuporia uma analogia entre Gênero e Classe e Raça. Para estas pesquisadoras as desigualdades sociais de poder estão organizadas segundo, no mínimo, estes três eixos: Gênero/Raça/ Classe. O problema é que esta articulação pressupõe uma paridade que não existe. Segundo Scott "classe tem seu fundamento na elaborada teoria de Marx (e seus desenvolvimentos ulteriores) sobre a determinação econômica e mudança histórica, 'raça' e 'gênero' não carregam associações semelhantes" (1995, p.73). O próprio conceito de classe não é unanimidade entre as pesquisadoras(es), pois umas utilizam a referência Marxista, outras(os), a Weberiana. Não existe nem, nesse nível, uma clareza a respeito de Raça e Gênero, nem as desigualdades existentes nas práticas e relações sociais, em relação à assimetria Homem/Mulher e etnia, se dão no mesmo plano de análise das determinações econômicas.
As(os) historiadoras(es) buscam, então, que o conceito de Gênero dê conta de três questões:
- Explicação das continuidades/descontinuidades e dar conta das desigualdades presentes, cias experiências sociais radicalmente diferentes.
- Constatação da alta qualidade dos trabalhos sobre a história das mulheres e seu estatuto marginal em relação ao conjunto da disciplina.
- Um desafio teórico, exigindo a análise não só da relação entre as experiências masculinas e femininas no passado mas também a ligação entre a história do passado e as práticas históricas atuais.
Mas, nem só de teoria vive a história e as tentativas de conceituar o termo Gênero; muitas vezes, tais tentativas não saíam dos quadros da Academia e apresentavam "tendência a incluir generalizações redutivas ou demasiadamente simples, que se opõem não apenas à compreensão que a história como disciplina tem sobre a complexidade do processo de causação social, mas também aos compromissos feministas com análises que levam à mudança" Scott (1995, p.74). Mais do que isso, não levavam em conta o engajamento do movimento feminista, suas lutas e estudos, na elaboração das análises.
As teorias hoje existentes sobre Gênero se colocam dentro de duas categorias.
Uma teoria que explica o conceito de forma essencialmente descritiva, sem interpretar e atribuir causalidade.
Neste âmbito estão os estudos recentes do uso do Gênero, que acabaram virando sinônimo de Mulher. Onde se lia antes Mulheres, agora leia-se Gênero. Essa utilização acaba por dar uma conotação mais objetiva e neutra (não nos esqueçamos do significado de neutro no dicionário) do que as Mulheres. A tentativa acaba descartando a participação e experiência do movimento feminista, dissociando Ciências e Política. Não implica também uma tomada de posição sobre a assimetria de poder, nem designa a parte lesada. Inclui as Mulheres sem as nomear! Lembremo-nos do que diz Lacan de que a mulher não existe, estando no campo do inominável, ou seja fora da linguagem.
Outras teorias explicam o Gênero para sugerir que as informações a respeito das mulheres são necessariamente informações sobre os homens, que um implica o estudo do outro. Esse uso insiste na ideia de que o mundo de mulheres faz parte do mundo dos homens, que ele é criado dentro e por esse mundo. Rejeita-se assim as esferas separadas, as justificativas biológicas. O Gênero seria uma forma de indicar construções sociais. Assim, gênero seria, "segundo esta definição, uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado" (Gates, citada por Scott, 1995, p. 75).
Usar Gênero assim pressupõe todo um sistema de relações que pode incluir o sexo, mas que não é diretamente determinado pelo sexo nem determina diretamente a sexualidade. Coloca-se aqui então o desafio de reconciliar a teoria com a história, que trata das experiências e estudos específicos. Como articular teoria, concebida em termos gerais e universais, com a especificidade de condição feminina?
As(os) historiadoras(es) feministas realizam abordagens sobre o Gênero que podem ser resumidas em três posições teóricas:
- Esforço inteiramente feminista que tenta explicar as origens do Patriarcado.
- Discussões dentro da tradição marxista.
- Inspira-se nas várias escolas de Psicanálise para explicar a produção e a reprodução da Identidade de Gênero do sujeito, dividida entre o Pós-estruturalismo francês e as teorias anglo-americanas das relações de objeto.
Diante do exposto, chegamos à necessidade - e indo pelo conceito expresso por Scott - de entender que o termo "gênero é um elemento constitutivo das relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos... o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder" (1995, p.86).
Poderíamos enfrentar a explicação do conceito Gênero das mais variadas formas e sob os mais variados prismas teóricos. Preferimos, nessa primeira aproximação da temática, expor as questões que envolvem a sua conceituação e sua aplicação aos movimentos e à Academia, bem como as teorias que embasam cada uma das utilizações. No entanto, achamos que a conceituação de Scott sobre Gênero é a que pode ser mais utilizada neste momento, por englobar vários componentes, que açambarcariam melhor o termo. Embora também seja uma das explicações e o saber tem que existir para ser transformado/construído/reconstruído incessantemente, num movimento de busca das singularidades sociais e pessoais dentro da subjetividade capitalística como Guattari mostra (Guattari e Rolnik, 1986).
Esmiuçando a conceituação de Gênero de Scott, vemos que esta definição constitui-se de duas partes e várias subpartes. Assim, os elementos constitutivos em relação à primeira parte da definição de que o "gênero é um elemento constitutivo das relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos" (1995, p. 86), implica quatro elementos relacionados entre si:
1- "Símbolos culturalmente disponíveis que evocam representações simbólicas (e com frequências contraditórias)" (Scott, 1995, p.86) como, por exemplo, Maria e Eva - a pureza e a sujeira... As apresentações desses símbolos podem propiciar múltiplas interpretações, mas são contidas em interpretações binárias, a partir de explicações culturais.
2- "Conceitos normativos que expressam interpretações dos significados dos símbolos, que tentam limitar e conter as suas possibilidades metafóricas. Esses conceitos estão expressos nas doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas e tomam a forma típica de uma oposição binária fixa que afirma de maneira categórica e inequívoca o significado do homem e da mulher, do masculino e do feminino" (Scott, 1995, p. 86), via rejeição ou repressão de outras formas. Assim, por exemplo, a virilidade é associada ao Masculino e a feminilidade ao Feminino. Um homem não pode ter um comportamento mais dócil/emotivo, que automaticamente será rotulado de afeminado. Outro exemplo é o da pessoa que não se situa nem como masculino, nem como feminino, em termos de opções sexuais.
3- "A noção de fixidez ... que leva à aparência de uma permanência intemporal na representação binária dos gênero" (Scott, 1995 p.87). A maioria dos estudos, além de apresentar a dialética da história e das práticas sociais nas suas análises, não incluem a noção de político, compreendendo esse político como a resistência ou coerção a que foram sujeitas as mulheres, principalmente para ficarem fora da história. Um exemplo disso é a volta do uso do véu preto, cobrindo o rosto das mulheres iranianas, após a tomada do poder pelo Aiatolá Khomeini. Seria necessário incluir, na noção de Gênero, a noção de político, tanto em relação às Instituições, como em relação às organizações sociais, ou seja, a atuação no Macrossocial também é importante.
4- A noção de Identidade Subjetiva. Como as Identidades de Gênero são construídas, a partir de formação de conceitos/preconceitos imaginária e simbolicamente. A partir da compreensão da Linguagem enquanto elemento formador e constitutivo do Psiquismo, bem como os símbolos, que prendem os sujeitos a formas normativas de exercer a sua subjetividade. Como trabalha, por exemplo, a Educação diferenciada, existente no seio de nossa sociedade hoje, constituindo formas específicas de internalização de valores grupais e sociais. Como viver o exercício da sexualidade amarrado aos conceitos de papéis sexuais, de masculino/feminino, de normalidade e anormalidade, de pureza e sujeira. Basta nos recordarmos dos significados/tipos de mulher, que o dicionário nos presenteou, colocado por nós neste texto. Se a concepção de Mulher é de ser ou santa ou puta, onde fica o livre exercício de cidadania e o exercício dos desejos? Assim também, se é verdade o que Lacan coloca de que o "Inconsciente tem uma sintaxe particular, sendo estruturado como uma linguagem" (Cesarotto e Leite, 1992, p.55), coloca a mulher fora do nominável, já que a Língua é construída no masculino. Pensar e repensar estas questões são fundamentais em relação a todas as culturas, dentro de uma análise que permita entender a construção dessas representações historicamente situadas.
A segunda parte da definição de Scott, de que "o Gênero é uma forma primária de significar as relações de poder" (1995, p.88), a leva a citar Godelier que aponta: "...não é a sexualidade que assombra a sociedade, mas antes a sociedade que assombra a sexualidade do corpo. As diferenças entre os corpos, relacionadas ao sexo, são constantemente solicitadas a testemunhar as relações sociais e as realidades que não têm nada a ver com a sexualidade. Não somente testemunhar, mas testemunhar para, ou seja, legitimar" (p.89).
Assim, em lugar de nos perguntarmos sobre o que é Gênero ou Gênero, o que é isso?, será que não deveríamos buscar a compreensão de como esta denominação está se Construindo/Desconstruindo?
Desse pequeno apanhado surgem, como certas, mais do que certezas, inúmeras incertezas e possíveis pistas necessárias para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária nas suas diferenças, semelhanças e multiplicidades. Enfrentarmos a reflexão aqui colocada, é um desafio para todas(os) nós. Essa discussão/compreensão acompanha todos os níveis da sociedade e nos envolve a todos. No campo da Academia está o desafio de resgatarmos o conhecimento de uma forma a inserir essa reflexão no seio de todas as disciplinas. Assim a Gramática, a Medicina, o Direito, a Biologia etc. surgem como saberes a serem problematizados. No seio dos movimentos está a necessidade de refletir sobre nossa história, que faz parte da História, de aprender/compreender a importância destas colocações aqui sumariamente ainda esboçadas. Este é o nosso desafio!
Referência: GUEDES, Mª Eunice Figueiredo. Gênero, o que é isso?. Psicol. cienc. prof. vol.15 no.1-3 Brasília, 1995.
Fonte: Scielo
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